sábado, 15 de setembro de 2007

O EVENTO NO LAGO





Em Boa Esperança, sul de Minas Gerais, existe um lago. E um tradicional festival de música. E nós participamos do festival, e conhecemos o lago, e isso aconteceu na semana passada.

Matemática não

O 37º Festival Nacional da Canção se desenrolou em 4 etapas: a) entrar numa seleção de 75 músicas entre mais de 2000 inscritas; b) participar de uma etapa nacional em uma das 5 cidades mineiras: Poços de Caldas, Formiga, Varginha, Alfenas e Boa Esperança; c) participar da semifinal em Boa Esperança e d) participar da grande final em Boa Esperança.

Vejamos: Cada cidade recebia 12 músicas “estrangeiras” para a etapa nacional; concorremos por São Paulo, mesmo com sotaque, pois valia o endereço da postagem. Com mais 3 escolhidas na noite anterior à etapa nacional daquela cidade, formavam as 15 da semi-semi-final; cada cidade mandando 3 formavam novamente o número de 15 para a semifinal de Boa Esperança, e, desses 15, 10 iam pra final.

Recapitulando, de + de 2000 pré-selecionavam 75, que foram divididos em 5 grupos de 15 – um por cidade; saíam 3 por cidade, sendo que cada cidade tinha antes da etapa nacional sua etapa local. Nas etapas de cada cidade, 3 das 15 locais eram promovidas para a fase nacional e então, tinham a possibilidade de ir para a semifinal, caso ficassem entre os 3 de 15 da fase nacional daquela cidade, que acontecia na noite seguinte. Ok, eu também não entendi de primeira. Mas foi tudo certinho, sô!

Não complica, tchê!

Nossa primeira tocata foi em Poços de Caldas, onde conquistamos o primeiro lugar. A música era Mira. Em segundo lugar, ficou a música Esperança, interpretada pela cantora mineira Márcia Tauil.

Atravessamos todas as etapas e chegamos até a final, obtendo o segundo lugar no festival. Em primeiro, foi a Márcia. Numa interpretação de arrepiar, diga-se de passagem. No final, conhecemos uma turma muito legal, com a qual ficamos conversando até altas horas sentados num XIS: Samuel, Eduardo, Simone e Leanderson.

Foi um prêmio importante para nós. Na tarde que precedeu a grande final, em Boa Esperança, aconteceu o Evento no Lago.

Nem falei de Jundiaí

Ao mesmo tempo, participamos de outro festival nacional no interior de São Paulo, Jundiaí. Foi muito bom, passamos pra grande final lá também, mas as datas coincidiam. Tivemos que optar e acabamos ficando em Boa Esperança, mas essa história contaremos depois.


O fio da meada

Descansando das quantas viagens que fizemos para chegar até a pacata cidade mineira, deixamos o hotel, comandado pela dona Zezé, para passear. Descobrimos um lago muito bonito e ameaçamos uma volta de pedalinho. Ao chegar no lago, tiramos uma foto, que ilustra essa carta. No fundo da imagem, o lago. Mais ali, uns caras tocando violão, uns bebuns com seus cães, e uns pedaços de melancia.

Sentamos numa sombra e conversávamos sobre os reflexos da luz na água, quando chegou um engraxate e abordou Gustavo, engraxá sapato aí tio. Gustavo reage indeciso – mais pra negativa - e o piá, indignado, engraxá sapato aí tio, pra ajudá, pô! Vinícius cata moedas. A voz forte do piá me fez pensar que tio era tchê como quando um gaudério chama atenção de outro, e com essa chave de estranheza aconteceu o famoso “quê ki eu tô fazendo aqui”, então percebemos que havia começado mais um evento.

Ficamos hipnotizados por uns instantes vendo o perfeccionismo do guri, que pingava suor da testa enquanto fazia o serviço, sério e compenetrado. O sapato do Gustavo, de passear no lago - que era o mesmo do show – estava bastante esgualepado e deu uma boa melhorada com a intervenção.

Os bebuns se espalharam na água e a rodinha de violão, que estava ao fundo, se dissipou por um momento. E como saía Isadora Ribeiro da água, na antiga abertura do fantástico
programa global, um dos mendigos emergiu lentamente olhando pra nós. Haviam guris tocando violão, mas 3 caras são os que participaram conosco do evento.

Um foi esse, que saiu da água. O outro que doravante chamarei “bebum”, visivelmente queimado do sol e embriagado, portava uma garrafa de canha. O último era o do óculos, dono do violão.

O que surgiu da água veio direto, mandou buscar o violão e “toca uma aí que eu te saquei de longe só pela unha”. Perceptivo, não? Não me neguei, peguei o tonante que o moço trouxe e mandamos ver nossa “Ao Encontro da Noite”. O do óculos e o bebum aprochegaram e começou.

A próxima música foi “Nada de mais”. Entre uma e outra, vinham os comentários, observações deles sobre as letras e aquelas profecias que só os “malucos da rua” sabem fazer com perfeição. O bebum tinha no pescoço um escapulário que dizia “anjo da guarda” e, quando falava de Deus, sempre tirava o chapéu. O olhar, lacrimejante e amarelado pela canha, era de cortar o coração. O que saiu da água era o mais malandro e gostava de heavy metal. Mas cantou junto com a gente Canção da América, umas do Beto Guedes e filosofamos sobre o que estava acontecendo com a humanidade, de uma forma simples mas muito instigante. Bem afinado esse cara que veio da água. E arranhava umas do Raul e do Zé Ramalho e tocou uma internacional, acho que era Nirvana.

“Vocês nos deram alegria aqui, e primeiro é Deus!(...)”


A gente fazendo altos vocaizinhos e caprichando nos acordes e eles não se acanhavam não... cantavam junto e tocavam trechinhos de músicas como “nô,uômâ no crai....” sem nos considerarem mais ou menos que eles. Cada um com seu timbre e expressão peculiar dava o seu recado. O bebum não cantava, e cada vez que um dos dois interrompia a música para comentar algo ele chiiii pedia silêncio e só baixava a guarda quando as frases completavam seu sentido. O de óculos não era de rua e não bebia, mas estava com eles como se fosse da turma (o negócio dele era a melancia e a parceria pra viola).

Esse do óculos... bem, no primeiro instante imaginei que tivesse algum problema, sei lá.. ele se embananava com as palavras, mas o que falava era de fundamento.. como se fosse uma TV mal sintonizada, passando um programa legal! Das muitas que ele disse, ficou essa: “.. Deus não quer que a gente fale, quer que a gente faça.. inclusive eu acho.. opa, já estou falando demais..”

O interessante desses caras que vivem na rua é que eles realmente não servem para nada no mundo governado pelo capitalismo: são lixo, escória, problema, perigo, vergonha, fedor. Seu destino é vagar até encontrar uma prisão, sanatório ou cemitério.. e, enquanto isso, seguem suas existências como pedaços de carne “sujando” a imagem falseada que temos de uma sociedade “democrática” que busca “justiça”, “igualdade” e “soluções para o mundo”.

Esses párias, esses sem nome da beira do lago, nos abençoaram com uma autoridade estranhíssima. Olhavam para o céu, removiam seus bonés, tocavam em nós e profetizavam muitas coisas. Oraram com grande fé por nós, emocionados, e nos emocionaram com suas palavras. No final, levaram nossos autógrafos. Algumas pessoas pararam, vi de canto umas tirando fotos. O evento durou mais ou menos o tempo de um show, 1h 20min mais ou menos.

Antes do fim nos dirigimos a um casal de jovens muito atentos que acabaram participando do final do evento do lago: Larissa e André. Foi muito legal conhecê-los ali naquele contexto. Eu não sei se na hora falei alguma bobagem, mas é certo que minha consciência estava ali em um estado totalmente diferente, como que mais ligada. Saímos dali como se diz, sorrindo de olhos arregalados.

Boa Esperança foi demais. Só faltou o pedalinho!

Ei você...

 
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